sábado, 29 de março de 2014

V: Lai da Coroação


“De glórias vazias e malfadadas
O breve reinado cinzento
Do temerário conquistador fugaz
– O soberbo Rei Sem Lamentos

Brandiu da altiva Thurínia o estandarte
Em rumo implacável e intento
Tingiu sua terrulenta marcha escarlate
Ao estalar feroz do açoite sangrento

A mão mórbida de mares profundos
Coroou pujante seu mando tirano
Baa’ashal – Ancestral Horror do Oceano
Abraçou em régio louvor insano

Lavou a terra em maré reluzente
Com ondas rebentas de aço legionário
Inundou como enchente os picos nortenhos
Varreu qual tormenta o sul balneário

Caíram as coroas! Caíram os tronos!
Anunciaram os bardos aos reis de outrora
Entregaram seus cetros ao novo soberano
Dobrados à feitiçaria compulsória

Todavia da mercenária de dias combalidos
Os filhos bravios tombaram ceifados
Cobertos precoces em pálido manto
Embora a mãe não os tenha pranteado

Inflamado o fulgor da fúria materna
Ecoaram seus brados em fúria às montanhas
Responderam fiéis seus irmãos selvagens
Armaram em bravura nova campanha

Pela voz do vento se espalhou notícia
Da rebeldia barbárica em levante
Liderada à sombra da leoa ferida
Cresceram as armas da vingança andante

Lavrados embates sorrateiros
Bateram às portas do altar Baashalita
Recuaram os homens aos desformes medos
Avançou somente a amazona maldita

Cruzados os pavores do infame palácio
Irrompeu enfim ao salão tentacular
Juras de abomínio mortal proferidas
Espada ante bruxaria ao prateado luar

Empalado o feiticeiro, findado o feitiço
Ainda que deitado sobre o ventre partido
Devaneasse em moribundos risos
A vã grandeza de seus feitos hauridos

Ruíram as espiras ventosas de Kahashamar
Retornadas ao negro seio oceânico
Do povo Thuríniano partiu o clamor
 A quem ocupasse o relegado trono

Assim se foi o Rei Sem Lamentos
Sem que o prestassem qualquer lástima
E em seu lugar se fez coroada
– A inclemente Rainha Sem Lágrimas”

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

IV: O Cálice Obsidiano


Duas coisas faziam de Thamira infame como a Cidade das Adagas: as numerosas casas mercantes, que tramavam golpes afiados umas contra as outras em suas reuniões, e as incontáveis guildas criminosas, que apunhalavam seus habitantes menos afortunados na calada da noite. Era uma cidade assolada por tratantes, punguistas, receptadores, salteadores, embusteiros, usurários e toda sorte de indivíduo tido como escória em outras partes do mundo. E era amada e odiada por isto.

Erguida em torno da Baía do Tridente, suas três divisas da cidade podiam ser avistadas à distância: o Rochedo, a Crescente e o Estaleiro. A parte mais elevada, o Rochedo, ocupava uma longa falésia onde os abastados residiam sob a sombra do Forte Tridente. A Crescente era oposta ao Rochedo tanto geograficamente quanto socialmente. Tinha este nome pela forma que se espalhava na costa, mas também pelo odor salino que a alta das marés impregnava em suas vielas. Entre os dois extremos havia o Estaleiro, a mais peculiar das divisões de Thamira: uma aglomeração de milhares de embarcações cujos conveses serviam como tavernas, bordéis, oficinas e moradia para suas tripulações. Em meio às águas turvas da baía erguia-se a estátua de Santa Thamira, a décima terceira maravilha do Império Andorano, uma gigantesca donzela de pedra cercada por um cardume faminto de madeira.

– Isto tudo já fora um paraíso – os passageiros do Muriella haviam escutado o barqueiro pavonear a cidade um sem número de vezes. – Praias de cascalho cristalino banhadas por águas reluzentes. Pássaros coloridos como pedras preciosas. Frutas maiores que a cabeça de uma criança. Sol quente durante os dias, brisa fresca todas as noites. – Manifestava saudades quase sinceras em sua nostalgia imaginária. – Antes do Sopro de Faugnar, é claro. Antes das Cinzas. Mas era um lugar onde os homens podiam viver como o Criador imaginou que deveriam viver.

– Seu nome é Serise – inclinados sobre a balaustrada, dois rapazes confraternizavam. – Veio de Lothal há um ano. Nos conhecemos no último dia da hoste, no Canção da Harpia. Teve que deixar a vila antes que o condestável lhe fizesse coisas. Se você a visse... entenderia porque ele queria fazer coisas. – Sorriram.

– Os casacos-vermelhos são inofensivos. Se ficar longe do Rochedo, nunca vai ter problemas com eles. – um senhor de mãos calejadas advertia aos companheiros de viagem. – Os casacos-marrons, estes sim, são uns miseráveis. Vão arrancar o trabalho duro de um homem, e se ele não tiver nada a oferecer, vão arrancar seus dentes pelo desacato.

Um fidalgo evidentemente em maus tempos oferecia toda sorte de regalias a uma dama pouco donzela. Uma jovem cavalariça cuidava das necessidades de um par de cavalos no nível inferior, cujo odor de confinamento subia pelos vãos do casco. Quatro embarcadiços tomavam conta das velas enquanto o barqueiro conduzia o leme. Todos se misturavam à sua maneira à Cidade das Adagas, fossem modestos ou pretensiosos em suas aspirações. Todos sabiam que a discrição era a virtude da ordem ali.

A guerreira em armadura, por sua vez, destoava como um urso em um salão de dança. Embora houvessem muitos estrangeiros na cidade, era claramente recém-chegada: faltava-lhe a queimação típica dos que viviam sob o sol da costa. Os cabelos pálidos, o rosto ríspido e a manta de peles enrolada à cintura estampavam suas origens nortenhas; a espada pendurada ao ombro e estatura impressionante estampava sua natureza belicosa. Contudo, o que realmente a destacava dos outros era a grave indiferença às figuras escusas dispostas pelos cantos. O barco atracou à hora do ocaso na Crescente. À hora da penumbra, os olhares irascíveis que a vigiavam cruzar as docas haviam crescido exponencialmente.

– São duas coroas pelo registro. Seu nome e propósito? – O encarregado da plataforma avaliou a visitante com partes iguais de desprezo e desdém, quando chegou sua vez à fila.

– Ashlan, uma Drúan do Norte. Venho como mercenária. – A guerreira também inspecionou o sujeito aprumado antes de abrir a bolsa. Intuiu que estava sendo extorquida de alguma forma, fungou contrariada, mas deixou os nove leões de prata sobre a bancada, consideradas as taxas de conversão. O preço desonesto da civilização.

– Você parece o que diz. – Recolhida a taxa de desembarque, o encarregado despachou a requerente.

Ashlan caminhou pelas passarelas suspensas do porto livre de um fardo. Armaduras e embarcações não eram boas amigas, e toda a descida pelo Rhien fora severamente exaustiva. Seus planos se resumiam a encontrar uma boa hospedaria para descansar o restante da noite, e no dia seguinte, se embrenhar pela cidade com o intuito de transformar seu aço em ouro. A princípio, imaginou que as carrancas que a observavam fossem o estranhamento de homens desacostumados a mulheres-de-armas, como já acontecera em outros lugares antes. Porém, quando seus dois acompanhantes na escuridão se tornarem quatro, em seguida seis, e mais algumas esquinas adiante uma dezena, concluiu que teria de mudar de planos.

A súbita perspectiva do confronto reinflamou seu ânimo. A estrangeira se enfiou rapidamente por um beco para forçar a abordagem dos espreitadores por uma única fronte. Talvez acabasse por marcar sua chegada à Cidade das Adagas de forma sangrenta, afinal.

– Venham, corvos. Venham tentar a sorte. – Virou-se para a entrada e brandiu a espada convidativamente.

Os membros ao fundo do bando forçaram aqueles mais adiante a responderem o convite. Estes resistiram instintivamente ao movimento, incertos sobre arriscarem as próprias vidas com tanta avidez. As faces reveladas pelo luar eram compostas por olhos de rapina, feições predatórias e narizes quebrados; além das aparências embrutecidas, estavam todos decididamente armados, fossem com as famigeradas adagas, porretes, ou mesmo pedras às mãos.

– Permita-me fazer uma cortesia e um convite, milady. – A resposta veio de uma voz aveludada às costas da guerreira. Ashlan girou sobre os calcanhares de imediato, surpresa que alguém estivesse ali sem que tivesse notado. Vislumbrou uma forma esguia e encapuzada, que deixou as trevas como se cruzasse uma cortina. – Ajudo-a a viver aqui e peço apenas que faça o mesmo por mim outra noite. – Complementou a fala com as mãos espalmadas em sinal de paz.

– Posso matar o suficiente para darem meia-volta – o anúncio enfático reteve os salteadores à distância. Pareciam ignorantes à segunda presença na viela, talvez incapazes de diferenciá-la da escuridão dominante.

– É possível que sim, milady. Mas uma turba de assaltantes como esta sabe que só é preciso um golpe certeiro para o mais blindado guerreiro cair. – O capuz negro encobria por completo o rosto do estranho. O corpo estava revestido em couro igualmente negro, cortado sob medida e ornamentado por múltiplos bolsos afivelados. Na cintura, pendia o rebuscado guarda-mão de um sabre embainhado, acompanhado por um punhal de cabo de marfim. Além da aparência refinada, tinha os movimentos calmos de um felino sossegado, uma parte sutilmente calculada de sua elegância obscura. – E nem tudo aqui é como parece.

Uma indicação de relance foi suficiente para Ashlan perscrutar as telhas ao redor. Distinguiu um trio imiscuído sob o céu noturno quase a postos para alvejá-la com tiros de besta. Podia escalar ligeiramente para os telhados, mas isto a deixaria vulnerável por momentos fatais ao bando no chão. Por outro lado, se permanecesse ali, seria alvo fácil às setas. – Além disso, acrescento ouro à proposta. – O homem concretizou a oferta diplomática.

– Este é um acordo melhor. – A guerreira assentiu com a cabeça. – Você tem minha palavra.

– Corso Amcar, milady, a seu dispor. Podemos? – Estendeu a mão.

– Bem, eu chamei por corvos. – Suspirou sardonicamente e esticou a manopla em retribuição. – Um realmente veio. Eu sou Ashlan.

Tão logo trocaram cumprimentos, ambos desapareceram do mesmo modo misterioso que o ladino surgira, envoltos por uma mortalha sombria. A estupefação dos salteadores deixou evidente o caráter sobrenatural da arte de Amcar. O ladino conduziu a Drúan para além do beco, ignorando os obstáculos pelo caminho como se fossem dois vultos fantasmagóricos, até se desfazer de sua mão; então um frio de morte atingiu o corpo da guerreira, percorrendo-a impiedosamente até o interior dos ossos. O homem também soprou um hálito gélido ao recobrar o fôlego, estremeceu, mas se recompôs prontamente da travessia. Ashlan esboçou uma expressão aborrecida de questionamento, mas o ladino se antecipou em resposta, ainda azul de frio.

– Ossos do ofício, milady.

Caminharam céleres pelas plataformas corroídas e vias estreitas, deram voltas para iludir quem pudesse segui-los e se dirigiram às luzes de uma pequena casa elevada, que se revelou uma discreta taberna. Durante o percurso, Ashlan passou a observar o seu guia com um crescente e inevitável senso de precaução. Entendia pouco das artes ocultas, mas conhecia o suficiente para saber que nada de bom vinha deste ofício. O preço que cobrava na alma dos seus usuários era, deveras vezes, alto demais. E sabia que aquele homem a envolveria em suas dívidas. Ainda assim, tinha dado sua palavra. Portanto, o seguiu.


§


Desvencilhado do capuz, Amcar revelou-se um homem mais velho do que sua boa forma indicava. Possuía o rosto magro, marcado de linhas do tempo, e o escuro dos cabelos ondulados apresentava manchas grisalhas. Os olhos eram tão negros quanto suas vestes. Uma das orelhas tinha sido mutilada. O dedo mínimo não se movia sob a luva da mão esquerda. E mesmo encobrindo parte do rosto com um cavanhaque bem aparado, uma longa cicatriz cortava-o do queixo até o lábio inferior. A Drúan suspeitou que muitas outras cicatrizes talhassem sua pele por debaixo da armadura. Embora no Sul fossem vistas como desfigurações, no Norte elas eram reconhecidas pelo que eram: as marcas de um sobrevivente.

Segundo Amcar, a Última Lanterna era um dos mais confiáveis refúgios na Cidade das Adagas, onde podiam descansar e se recompor sem pressa. A adega era suficientemente silenciosa e aconchegante para valer sua reputação. Não comportava mais de uma dúzia de clientes, e os únicos presentes no momento eram os dois recém-conhecidos, além da própria anfitriã. Conforme relatado por Corso, Madame Zenovia era quase parte do folclore de Thamira: diziam que seus olhos de cor violeta eram consequência dos pactos que fizera para aprender sua feitiçaria. A coleção de máscaras de porcelana atrás de seu balcão colaborava com sua aura de mistério. Diziam que podia mudar o rosto de qualquer homem ou mulher. Verdade ou não, Amcar tratava-a com mais cortesia de que algumas rainhas receberiam em suas cortes.

– O capitão do barco deveria tê-la prevenido. Os guílderes do porto têm por hábito acossar assim que possível àqueles que parecem demasiadamente abastados e sem escolta. – Devaneou por alguns instantes. – O Muriella, você diz? É bem provável que o capitão estivesse em conluio por uma parte dos espólios.

– Conheço o tipo. Homens covardes escondidos sob uma fachada amigável. E minha bolsa teria causado mais prejuízo do que benesses. – A estrangeira pausou para se refrescar com o vinho amargo em sua taça.

– Suas armas e armadura certamente foram forjadas em um castelo, milady. Para os homens comuns de Thamira, isto é riqueza o suficiente para inspirar mais cobiça que respeito.

A guerreira bárbara deu de ombros.

 – Pois bem, Corso Amcar. O que você quer?

– Já que insiste – o ladino respondeu condescendente – nós vamos roubar um recipiente, milady.

– Um vaso? E isto é importante por quê? Alguém o tem como valioso, eu suponho. – Encheram as taças novamente.

– Mais do que suspeita, milady. – Mastigou lentamente uma fina fatia de pão azeitado. – Alguns diriam que é sem preço. Infelizmente, está guardado em condições deveras específicas; ou melhor, por um dono particularmente perigoso.

– Hum. Ainda assim, não creio que foram meus traquejos de ladra que o cativaram. – O sarcasmo arrebatou um sorriso suave do ladino. – O que você realmente quer? E de quem vamos roubar?

A anfitriã trouxe à mesa uma nova jarra de bebida e uma travessa de figos. Corso agradeceu-a com um gracejo em vestiniano. Seu olhar penetrantemente perturbador foi prova suficiente a Ashlan que os rumores eram verdadeiros.

– Furtar dos poderosos requer certas garantias, milady. E embora meu ofício seja tradicionalmente solitário, neste caso é preciso fazer uma exceção pelo sucesso da empreitada. Quanto a vítima, se trata de Sua Excelência Iluminada de Thamira, o Arquiministro Alberus Vercion. E por fim, meus olhos me dizem que mesmo debaixo de todo o aço, há uma caçadora das montanhas. Com pés que pisam leve tanto nos vales quanto na cidade. – Desta vez, foi o ladino quem fez uma pausa para refrescar a garganta. – Faz algum tempo que vigio as docas, milady. Sua chegada foi providencial.

– Um guarda-costas? – Ashlan apanhou uma fruta da travessa. – Me parece mais que precisa de um bode expiatório. Alguém para deixar para trás enquanto foge pela escuridão, caso seus planos deem errado.

– Ah. Eu realmente não confiaria minha segurança a alguém cuja mente também não fosse perspicaz. – O sorriso suave cresceu afetuosamente. – Fico satisfeito que minha intuição tenha sido correta.

– Sorte sua, velha raposa. – A guerreira retribuiu a condescendência com outro longo trago de vinho. – Pelo menos, você já ouviu falar do meu povo. Se tiver ouvido o bastante, deve saber que meus ancestrais me ensinaram que a ocasião faz o ladrão. – Sorriu seu próprio sorriso lupino para o fundo da taça vazia.


§


Ocuparam-se por três dias com preparações. O primeiro foi uma extensa busca pela vastidão labiríntica do Estaleiro. Se outrora fora paradisíaca, a aparência e odor atual da baía podiam ser comparados ao inferno, um que servira como latrina para milhares de pessoas por meia-dúzia de séculos. Além de sua distribuição geográfica distinta, a Cidade das Adagas tinha sua própria forma de infestação: as incontáveis gaivotas que se alastravam entre os barcos. Logo, Ashlan descobriu que trafegar pelas embarcações também era perversamente desorientador: a constante mudança de posições tornava impossível para qualquer recém-chegado definir um marco confiável por mais de meia-hora.

Amcar estava à vontade como o vento na campina. Movia-se como um dançarino entre os cascos flutuantes e parecia ser íntimo da maior parte do baile. Apesar disto, demoraram a encontrar o que procuravam, até ouvirem falar de um certo Isalim-ab-Azam: um comerciante Semírio que erguia vela somente do anoitecer à alvorada. Encontraram a barca esguia e curvilínea sob a lua alta; Isalim atendia aos clientes detrás de camadas de cortinas, e afora sua pele escura e sotaque melífluo, era irreconhecível. Corso estava familiarizado com seu idioma lírico; ignorante à conversa entre cliente e comerciante, Ashlan se entreteve com as prateleiras abarrotadas de ninharias: sedas finas como teias de aranha, empalhamentos de estranhos macacos pigmeus, areia que se movia como serpentes quando soprada. Pagaram uma pequena fortuna por um conjunto delicado de ferramentas e uma lanterna de vidro azul que Corso chamou de “olho-de-gato”, o principal motivo de toda a longa procura. Garantiu a Ashlan que era imprescindível à tarefa, e que se surpreenderia com suas propriedades.

No dia seguinte, visitarem a orla da Crescente, desta vez com destino certo. Foram até uma pequena alfaiataria comandada por um cavalheiro Orvisiano de nome Vallouis. O alfaiate tirou as medidas da Drúan minuciosamente enquanto protestava sobre a impossibilidade de costurar o que lhe fora pedido no prazo solicitado. Após o ladino oferecer outra pequena fortuna, os protestos rapidamente se tornaram resmungos resignados.  

O restante do dia foi destinado a explicações daquilo que Amcar julgava essencial sobre Thamira: como achar um guia confiável no Estaleiro; os crimes passíveis de punição na cidade, e os subornos considerados razoáveis pelos guardas; os territórios dos Ratos de Beco, Navalhas Negras, Martelos Quebrados, Capuzes Noturnos, o Crânio, e suas guildas subordinadas; os barcos que jamais deveriam ser visitados; as tavernas onde sempre se podia encontrar asilo; os sobrenomes que era melhor evitar no Rochedo; e as mesas de jogo onde se podia ganhar alguma prata de maneira quase honesta.

No terceiro dia, a Drúan teve tempo para explorar a cidade sem a companhia de seu instrutor expedito. A ausência de Amcar exigiu olhares afiados contra pretensos aproveitadores, repetidas deferências contra mercadores insistentes e o auxílio de um jovem guia bem-pago. Neste ínterim, procurou saber sobre o Arquiministro por conta própria. Era reverenciado como geralmente o são as autoridades eclesiásticas, visto o temor que a maioria dos homens possuía de seus sacerdotes. Ashlan nunca se incomodara com isto; entre seu povo selvagem, somente os Ancestrais podiam julgar o espírito de alguém, e qualquer outra hipótese seria tratada como tolice. Esta tendência insolente a colocara mais de uma vez às portas da heresia; mas também a ensinara a achar amizade fácil entre os malquistos pelo clero. Assim, após algumas rodadas de cerveja, ouviu em meio às acusações típicas de sadismo, pederastia e sodomia, uma história sobre cerimônias orquestradas pelo Arquiministro em seu palacete, onde bebia de um cálice profano e consultava oráculos antigos. Se era esse o caso, a Drúan compreendeu bem porque Amcar fazia questão de manter suas intenções ocultas.

Passou enfim sob a sombra colossal da donzela de mãos suplicantes, já ao enrubescer do crepúsculo. Ali debaixo, era possível perceber quão grandiosa a imagem da Santa era: tinha pelo menos setenta metros de altura do nível do mar até o capuz, e apesar do vento, as ondas e a chuva terem-na flagelado severamente, suas rachaduras eram admiráveis à sua própria maneira. Para a selvagem estrangeira, eram sinal de que a natureza havia lhe atirado seu pior, e ela havia resistido. Era forte como a montanha. E se sobrevivera a todos estes testes, seria eterna como a montanha.

A seu pedido, o guia barganhou até conseguirem passagem para o interior da ruína. A escadaria de manutenção era velha demais para ser utilizada, mas as mãos da guerreira encontraram seu caminho pelas vigas até a parte mais alta da estrutura. Um portículo enferrujado dava acesso ao vão entre o capuz e o pescoço da estátua, onde havia um espaço confortável para se reclinar. Ashlan apreciou o vento frio e a quietude solitária. Como em todos os Drúan, havia um chamado obstinado em seu sangue para ver o mundo do topo. Sentada sobre os ombros do colosso, eventualmente foi tomada por uma profunda melancolia. Seus pensamentos vaguearam entre a grandeza do que os homens podiam realizar e a pequeneza que se contentavam viver. E embora não fosse seu hábito pensar além do hoje, devaneou sobre seu próprio destino, e se ainda alcançaria alguma distinção para si mesma. Então, se lembrou como a grandeza de todos os guerreiros era obtida, e como ela sempre se parecia com um oceano vermelho.


§


Às vésperas da meia-noite, três vultos indistinguíveis sob a lua minguante se moveram pela Baía do Tridente: o barqueiro em uma velha manta negra, o ladino e a bárbara envoltos no carmesim dos casacos-vermelhos encomendados no dia anterior. A barca contornou vagarosamente o Rochedo até sua face exterior, e abandonou a aglomeração do Estaleiro até cruzar a ponta da península, onde as falésias se erguiam a mar aberto. A balsa parou debaixo de uma ampla grade de dejetos à meia altura do paredão. Corso acertou o preço do serviço e do silêncio do barqueiro de sua maneira costumeiramente generosa. Em seguida, os dois passageiros subiram por degraus naturais até as barras maciças.

Diante do gradeado, o ladino buscou em seus bolsos uma ampola de vido esfumaçado preenchida por um pó cobreado. Aspergiu a nuvem cintilante à sua frente, retrocedeu um passo atrás trazendo a bárbara consigo, e observou pacientemente a reação alquímica entre os dois metais: um processo acelerado de corrosão que de outro modo levaria décadas ou séculos para ter seguimento. Quando suas mãos encostaram-se às grades, elas se partiram com um esforço leviano.

Lançaram pela entrada do túnel, enquanto Corso retornava a passagem a uma aparência minimamente inteiriça com alguma espécie de óleo esfregado nas partes onde se esfarelara. Terminado o meticuloso trabalho, estendeu para a comparsa a lanterna olho-de-gato. Assim que ergueu a peça cristalina, Ashlan viu que emitia um facho luminoso azulado que era incapaz de enxergar anteriormente. Amcar abriu mais uma vez seu sorriso complacente para a inegável desconfiança no semblante da bárbara.

Ambos se inclinaram adiante, enrolaram as capas nos ombros e afundaram as botas no excremento da aristocracia Thamiriana. A caminhada foi silenciosa, e em sua maior parte os ratos, vermes, insetos e outros inquilinos locais pareceram pouco incomodados com os visitantes. Os corredores semicirculares eram tão tortuosos quanto se podia esperar; Corso, todavia, transitava com a calma de um navegador familiarizado ao terreno. Atravessaram encruzilhadas, tanques de drenagem, passagens seladas e câmaras esquecidas à revelia do tempo. Após um quarto de hora, concordaram tacitamente sobre os outros pares de passos que acompanhavam sua marcha. Sem necessidade para mais subterfúgios, seus observadores se manifestaram. 

Vocês não são guardas. Vocês são ladrões e intrusos. – Uma figura em trapos que um dia foram calças e um colete se arrastou morosamente da interseção mais imediata. – E como todos os ladrões, vocês deveriam saber que é preciso pagar para cruzar o território de outra guilda.

Mais vultos lânguidos e encardidos se arrastaram detrás da silhueta esfarrapada. Os ouvidos treinados tanto do ladino quanto da bárbara perceberam uma peculiar quietude geral; como se os ratos também tivessem decidido se calar para observar a reunião. Seus pequenos olhos vermelhos se somaram a outros maiores e mais ferozes.

– Excelente. Mais carniceiros.

– Estes são de um tipo diferente dos corvos, Lady Ashlan. – Corso abrandou a companheira. Depois, desembainhou rapidamente sua cortesia usual.

– Ouvi dizer que os Rastejantes haviam abandonado o Rochedo. Que a curiosidade do Inquisitório tinha os expulsado e os túneis estavam vagos. Fico contente por ter ouvido errado.

– Nós não fomos expulsos, mestre ladrão. Nós fomos caçados. Mas a Hoste se repõe rápido. Nós somos muitos e implacáveis. – A figura se aproximou o bastante para se revelar em detalhes. Um largo chapéu de palha cobria o topo do rosto alongado; um emaranhado de cabelos esbranquiçados caia por sobre seus ombros; e um largo amuleto do Iluminado parecia ser a única coisa que pesava em sua carcaça esquálida. Ashlan notou que as ratazanas não somente rodeavam seus pés, como também se moviam confortavelmente sob seus farrapos, agarradas a seus braços magros. – E sua simpatia não significa nada aqui, Sombra de Lethari. Há um pedágio a se pagar. E vocês pagarão.

– Não trouxe nenhum presente apropriado para a ocasião, caro anfitrião. Meu erro, eu confesso. Mas nós nos conhecemos de longa data, Lazerach. Assim, em nome das tradições antigas, eu o peço respeitosamente por um desafio de esfinge. – Fez uma pausa para dar peso à proposta. – Pergunte o que desejar, e se a resposta for verdadeira, receberemos livre passagem. Caso contrário, pode ficar tudo aquilo que lhe interessar. Como é o costume.

– E nós simplesmente devemos honrar este arranjo? – Lazerach descascou tediosamente a pele dos dedos anormalmente longos. – Os tempos mudaram. Os mortais já não respeitam mais os costumes antigos. Por que ao invés disso não torcemos seus pescoços, e tomamos tudo que nos interessa, do mesmo modo?

– Minha sombra persistiria para levar notícias em meu nome, caro anfitrião. E o Conselho dificilmente aprovaria tal conduta por parte da Hoste. Da parte da minha acompanhante, digo que ela não me parece o tipo que se deixaria esganar sem uma luta feroz antes. E você sabe quão perigosos se tornaram os mortais, estes dias.

Não gosto desses termos, Amcar – Ashlan murmurou entre os dentes. Àquela altura, todos os caminhos da interseção já estavam repletos de vultos Rastejantes. Moviam-se como uma única criatura à espreita, suas diversas partes se ajustando calculadamente em antecipação ao bote. E a bárbara estava no papel da presa paralisada à espera do abate. O ladino se contentou apenas em gesticular moderadamente. – Seja paciente, milady.

– Seu Conselho é insignificante para a Hoste Rastejante, Sombra de Lethari. Nós estávamos aqui antes dos seus mestres chegarem e continuaremos aqui quando seus ossos virarem pó. – O homem esfarrapado estalou meditativo as falanges dos dedos. Seu olhar pousou sobre a lanterna, as armas e os casacos vermelhos. Corso sabia que havia o atingido na fraqueza de todos os ladrões: a ganância. – Mas faremos como pede. – Enfim, os lábios rachados formaram um fino sorriso laminiforme. – Que seja prova que a Hoste também sabe jogar os jogos da superfície. Nós o concedemos o direito à esfinge.

– A sabedoria da sua escolha não será esquecida. Nós nos submetemos às suas palavras, anfitrião.

Lentamente, Lazerach circundou os convidados enquanto assobiava uma antiga melodia infantil sob seu chapéu de palha. Cochichos ininteligíveis foram trocados entre os Rastejantes, e o anfitrião interrompeu-se somente para esboçar risos de algumas sugestões, ou considerar pensativamente outras. Eventualmente, ergueu uma mão como o orador que pede atenção à plateia. Suas palavras seguintes foram anunciadas na mesma harmonia macabra de sua canção.

 Ouça bem, pois o que digo é inegável verdade: de navalhas afiadas é seu sorriso, do espelho quebrado sua face. Para o louco é a visão inescapável do tormento; para o são, a terrível maldição da eternidade. Deveras sê contemplada, mas nenhum homem ou mulher jamais a toca, somente a escuridão; que sempre a tem pela metade.

O anfitrião se curvou e retrocedeu às sombras que o guardavam. Ashlan deslocou o peso do corpo de um pé para o outro e observou Corso na expectativa de que as palavras lhe significassem algo. O ladino se retraiu em uma intensa ponderação interior. Moveu os lábios, mas não pronunciou nada audível; apenas alisou cuidadosamente a empunhadura ornamentada do sabre em sua alienação.

Para a guerreira, ou o homem estava se despedindo de seus bens queridos, ou sinalizando uma súbita retirada. Ficou claro em seu olhar vago que a pergunta do anfitrião imundo era maliciosa o bastante para ser de natureza irrespondível, ou possuir mais de uma resposta. Fosse como fosse, ela sabia o que fazer.

Portanto, passados alguns instantes de um silêncio abismal, um dos Rastejantes se pronunciou a frente para investigar a lanterna azul empunhada por Ashlan. A Drúan concluiu que havia esperado o bastante: no tempo de uma respiração, ela chutou o Rastejante para longe, luziu a espada para fora da bainha, e respondeu ao enigma a seu modo barbárico. A lanterna foi ao chão, e o último fiapo de luz se extinguiu por completo nos túneis. Houve gritaria, guinchos e baques surdos, numerosos o bastante para abafar a voz de Amcar enquanto suplicava – Não, Ashlan! – Alguém desfaleceu na canaleta central da interseção, chiados se misturaram ao som de ossos quebrados, até que a voz rosnada de Lazerach irrompeu acima do caos.

Já chega! Deixem os!

A agitação foi bruscamente interrompida. A guerreira Drúan agachou para recuperar a lanterna, cuja flama azulada iluminou um rapaz com uma mão decepada, uma mulher e dois homens trespassados, Corso armado com seu sabre prateado e um garoto de nariz ensanguentado agonizante. O ladino tinha alguns arranhões no rosto, e parte da capa da bárbara fora rasgada, mas apenas o orgulho de ambos estava seriamente ferido.

– Deixem os ir.

A satisfação incontida de Lazerach escorreu como ácido nos ouvidos de Amcar e a face injuriada do ladino expressava a sensação efervescente. Em obediência ao mestre, a Hoste Rastejante recuou para os recantos do esgoto de onde havia despontado. Lazerach fez um cortejo exagerado ao conceder passagem. O ladino moveu-se adiante pelos túneis. A bárbara seguiu em seu encalço, voltada para a retaguarda apenas o suficiente para captar de relance os indivíduos que havia brutalmente trespassado tossirem e se levantarem, enquanto o amputado recolhia a mão caída ao chão. E teve certeza que viu os músculos e os ossos se esticarem para se encaixar novamente no corte ensanguentado.

Já haviam se demorado demais sob a guarida daquele anfitrião e a celeridade era a ordem da vez. Ainda assim, embora tivessem se afastado um bom número de passos do local do encontro, as últimas palavras de Lazerach os alcançaram cristalinas pelos subterrâneos.

– Ora, Sombra de Lethari. Quem está em dívida com o seu precioso Conselho agora?


§


– Nós teremos de temperar sua fúria, se pretende seguir no ofício da subtração, milady – o ar fresco da superfície reanimou o par o suficiente para voltarem a se falar.

– Vocês têm suas regras, seus conselhos e suas esfinges. Eu tenho o meu instinto. Fiz o que achei que devia para escaparmos...

– Eu sei, Lady Ashlan dos Drúan. E reconheço o mérito da ação. – Suspirou com mais resignação do que concordância. – Mas um leão da montanha que desce à planície não morre porque desaprender a caçar. Morre porque todos os outros animais sabem, antes mesmo que possa se aproximar, que é um estranho ali.

A metáfora de Amcar pareceu concatenar algum significado na mente da Drúan. Estavam ocupados em se lavar em uma das inúmeras fontes de alabastro que decoravam as praças do bairro aristocrata: esta, em particular, um largo chafariz adornado por um tritão e um círculo de nereidas, agora escurecido pelos dejetos raspados das botas que o visitavam.

– Onde fica Lethari? – Quando terminaram de se limpar, estavam em bons termos um com o outro novamente.

– Não é um lugar. – Reajustou as fivelas da armadura. – E a resposta era...

Soaram os sinos da segunda hora da madrugada na Catedral das Santas Súplicas. Sem disposição para mais delongas, bárbara e ladino prosseguiram discretamente pelas ruas impecavelmente pavimentadas do Rochedo. Os casarões, solares e palacetes compunham uma variedade ímpar de estilos arquitetônicos: o clássico Andorano, o intricado Orvisiano, a sobriedade Castenica, as cúpulas esféricas Semírias e a suavidade Vestiniana eram um mosaico extravagante das nações agregadas pelo antigo Império. Flâmulas pendiam da maior parte dos portões, bordadas com animais que denotavam as virtudes de suas Casas ou objetos que indicavam a natureza de seus negócios; mas pelas condições paupérrimas abaixo da península, Ashlan tinha convicção que nenhuma nobreza verdadeira vivia ali.

Os casacos vermelhos produziram o resultado esperado: pela hora que chegaram ao palacete do Arquiministro, as patrulhas com que cruzaram se resumiram a cumprimentos distantes ou absoluta condescendência. As grades em torno do casarão eram tão altas quanto se podia esperar, mas ao circularem-no Amcar dirigiu-se a um portão menor de serviços. Suas ferramentas mostraram-se úteis novamente, e após um conjunto de cliques sequenciados, desarmaram a tranca metálica.

Em tempo, haviam se embrenhado pelas bem-podadas cercas vivas que ornamentavam o jardim de Vercion. Em tempo, Ashlan desviou-se do vulto feroz que se lançou sobre os invasores. Era de pelugem lustrosa negra, musculatura robusta, focinho avantajado e veloz o bastante para dilacerar sem aviso a garganta de qualquer um que não tivesse um reflexo igualmente animalesco; um matador mais do que capaz em forma de cão de guarda. O segundo vulto saltou sobre seu braço, mas a reação da bárbara foi suficientemente ágil para rolar com o animal no solo, e aquietá-lo com um golpe de punhal enterrado no peito. O terceiro e quarto contornaram mais cautelosamente seus alvos, dotados de uma aguçada inteligência predatória.

Desvendada essa sagacidade perversa, a Drúan travou olhares com os cães. Agachou-se lentamente até estar à altura de seus focinhos. Flexionou as pernas e se apoiou em uma das mãos, atingindo um equilíbrio singular entre prontidão e ofensividade. Os cães circundaram mais uma vez sua potencial vítima, exibiram os dentes afiados, arriscaram rosnados intimidadores, mas eventualmente cederam à única mensagem que seu alvo comunicava: ela não se dobraria. Quando o maior dos cães avançou pata-ante-pata em sua direção, ela riscou a adaga carmesim no chão e a deixou à mostra sob o luar. Para Corso, pareceu que a bárbara estava exercendo algum tipo de encantamento ritualístico sobre os animais. Com efeito, o encantamento resultou na fera maldosa agachada aos pés da guerreira, para em seguida rolar com o ventre para cima. Depois de um afago, os animais debandaram às pressas pelo jardim.

– Excelente trabalho, milady.

– Meu pai era chamado Cão-Negro em seus tempos de guerreiro. Eles somente reconheceram nosso parentesco distante – tracejou um sorriso indulgente.

Seguiram pelas muralhas verdejantes por onde não poderiam ser avistados das janelas do casarão. Sob a cobertura do coreto central, uma hoste de anjos conclamantes estava petrificada em granito polido. Amcar girou a escultura sobre o pedestal de forma a acionar algum mecanismo que imediatamente fez saltar um par de tábuas do assoalho. Abriram cuidadosamente o alçapão secreto para revelar uma escadaria em espiral. A rapidez da descoberta confirmou à Ashlan que Amcar era de fato digno do título de mestre ladrão.

Desceram. A escadaria serpenteou por degraus estreitos engastados na própria pedra do Rochedo, em torno de paredes entalhadas por uma escrita obscura demais para significar algo a qualquer leigo. À medida que a escuridão espiralada se intensifica em densidade, outra certeza se formava à guerreira estrangeira: a de que adentravam o ventre de uma besta que não gostava de ser perturbada.

Por fim, a descida desembocou em um alto arco sustentado por pilares marmóreos. Um passo além da entrada, estavam em uma câmara tão ampla quanto o olho-de-gato era capaz de iluminar. Grandes pilastras escuras em forma de gigantes megacéfalos, parte homens, parte quirópteros, sustentavam o salão. Ao acompanhar a parede, Ashlan identificou que era circular e outros arcos se abriam em intervalos regulares. Tanto o teto quanto o assoalhado pareciam feitos de uma peça única de obsidiana, embora houvessem largas cavidades arredondadas ao longo cobertura, similares à alcovas. Não demorou muito para que a Drúan concluísse que aquela obra não poderia ser fruto do trabalho humano: suas trevas, seu silêncio e seu vazio eram inescrutáveis demais. Aquele lugar pertencia a eras mais antigas que os homens, quando outros arquitetos moldavam o mundo. Percebeu então que não haviam mergulhado nas entranhas de uma besta tenebrosa. Tinham penetrado nas profundezas de um templo.

– Corvos, ratos e morcegos. Deviam chama-la Cidade das Pragas – sua filosofia cínica manteve-a com os pés no chão. – Não devíamos estar aqui.

– Se fossemos somente onde nos é permitido, não seriamos ladrões, milady – os olhos de Amcar reluziram como duas contas inebriadas de cobiça. Adentraram pelo salão até distinguirem uma nova silhueta no negrume: um cilindro esculpido a partir do mesmo bloco maciço que tudo o mais, com cerca de um metro de altura, e pelo menos seis metros de diâmetro. Ashlan reconheceu seu conteúdo pelo forte odor ferroso muito antes de aproximarem; a cor vermelha escura do líquido que preenchia o tanque até a borda extinguiu qualquer sombra de dúvida. Tinha múltiplas marcas arranhadas por toda a beirada, o que para a Drúan indicava que era mais do que um tanque; era também um bebedouro.

Este é seu recipiente? Nós podemos ser ladrões, mas não há como levar isto, Amcar.

– Ouça com atenção, milady. Há um guardião aqui. É cego, mas escuta muito bem. Seja silenciosa. Use seus pés de Drúan – o ladino passou a despir-se do casaco, a parte superior da armadura, botas, ferramentas e sabre. – Eu retornarei em breve.

– Já chega, Amcar. Eu prometi acompanha-lo em troca de ouro. Não em troca de segredos, charadas e profanidades...

– Silêncio agora, Lady Ashlan. – Escorou-se na margem do tanque, e mergulhou.

Tão logo que a primeira onda escarlate transbordou além da bacia, um alarmante brado estridente, poderoso como o som de mil demônios gritantes, ressoou pelo salão. Garras chisparam ruidosamente a obsidiana antiga da parte superior do salão. Asas coriáceas se esticaram ao som de ossos entorpecidos estalados. O aço riscou o couro da bainha em resposta. Algo saltou do teto para uma pilastra, e da pilastra, para o ar.                                         

A forma alada rodopiou pela câmara e atirou-se contra quem havia perturbado a placidez do seu altar. Ashlan seguiu a recomendação de seu comparsa e, numa mescla de rapidez e furtividade, se afastou em direção às pilastras ingentes. Um breve lampejo do guardião foi revelado pela lanterna azul: uma criatura abrutalhada, albina e despelada, de peito largo e volumoso como um touro, com asas estiradas providas de uma única garra no lugar dos membros superiores, mas pernas humanoides atrofiadas onde deveriam estar os inferiores. Sua cabeça era uma carranca desproporcionalmente agigantada de morcego, deformada, entretanto, por dois bulbos inchados que ocupavam o lugar dos olhos. Em oposição à cabeça, uma longa cauda bífida, fina e escamada, se projetava do cóccix como um par de chicotes vivazes.

O protetor do templo disparou em uma nova investida raivosa contra a selvagem. Ligeira, a guerreira moveu-se lateralmente, mas a besta estendeu uma das asas e lançou-a violentamente para trás. Para a criatura, o impacto da armadura de aço com o assoalho tilintou como os sinos da Catedral das Santas Súplicas acima; ela ganhou altura em uma das colunas, e lançou-se outra vez contra sua oponente. A Drúan recuperou-se a tempo de não ser esmagada, mas não de evitar que uma das garras cravasse seu ombro ao chão. Seu urro lancinante elevou os ecos que soavam pelo salão a mil e um demônios gritantes.

A dor profunda despertou na Drúan o frenesi primitivo que acometia seu povo bárbaro antes de se entregarem à morte. Ela golpeou sucessivamente a monstruosidade albina com os joelhos e os punhos, uma, duas, três vezes, até que um dos golpes acertou seu crânio detrás da orelha, e uma das joelhadas rachou suas costelas. A criatura recolheu-se defensivamente, dilacerando em reverso o ombro ferido em seu movimento de retirada, mas permitindo que guerreira se levantasse e reencontrasse o equilíbrio.

Todavia, diante de uma perfuração hemorrágica incapacitante e um oponente com o triplo da sua força e o dobro da agilidade, Ashlan avaliou realisticamente sua condição. Temperou a fúria com argúcia. Deste modo, optou por uma estratégia de embate menos direta: retirou do cinto o que restava das suas moedas, e enquanto amaldiçoava mentalmente Corso Amcar, arremessou a bolsa em direção a um dos pilares. O som badalante atraiu o guardião conforme esperado; este agitou-se de frustração, após retalhar o vazio.

Dada a oportunidade de se reposicionar, a bárbara recuou com todas as precauções possíveis para se tornar uma aparição: os pés imateriais sobre o solado das botas, os movimentos coordenados com o peso distribuído das placas, a respiração paulatinamente trancafiada sob marteladas cardíacas. Buscou corda entre os pertences de Amcar. A besta compreendeu a intenção evasiva da invasora, e por um breve momento, iniciaram um jogo de caça e caçador. Contudo, antes que desse por si, era a monstruosidade quem estava sob assalto: quando ouviu o som de gotas de sangue tamborilar na pedra lisa, sua garganta já havia sido abraçada pelo laço atirado sobre sua cabeça demoníaca.

Sua reação, imbuída de ódio irracional, foi proporcionalmente enérgica à audácia da invasora. Ashlan tirou proveito deste ímpeto cego para reverter a força da aberração contra si mesma, auxiliada pela uma espada lançada como chamariz na direção correta e a curvatura sólida de uma coluna, combinadas de forma a retesar o laço em uma coleira. Confusa com sua situação, a criatura primeiro se estrangulou, depois tentou se desvencilhar do nó sem mãos hábeis para se socorrer, e por fim tentou alçar voo desajeitadamente. A bárbara puxou forte o bastante para garantir que isto não fosse possível, ancorou a corda à pilastra, e enquanto a besta ainda estava aturdida, partiu para sua própria investida de adaga em punho. Fincou a arma repetidas vezes na clavícula do guardião, o golpe inicial silencioso, os seguintes carregados dos urros insubordinados à opressão da quietude sacral. Quando afinal aa fera se deitou, a Drúan desenterrou a arma do seu pescoço, cambaleou até onde sua espada descansava inerte, e descansou ela mesma às margens do largo poço escarlate.

Momentos depois, a forma magra e atlética de Amcar emergiu arfante da fonte mórbida. Enxugou-se nos panos do casaco-vermelho, decorando-o com outros tons carmíneos, e recolocou seus trajes e pertences. De olhos semicerrados, Ashlan identificou que o ladrão tinha em mãos uma joia cintilante como um rubi, perfeitamente esférica e do tamanho de seu punho fechado. Também era peculiar o brilho sobrenatural pulsante que emitia: ritmado em dois tempos de baixa e alta intensidade, como o batimento de um coração vivo. Corso admirou a pedra preciosa antes de guarda-lo, e enfim, auxiliou a guerreira de aspecto combalido fazendo-lhe uma tala para o braço ferido.

– Você é verdadeiramente leal, Lady Ashlan. A maioria teria se acovardado e fugido em seu lugar. Minha intuição realmente foi acertada.

– Você me prometeu ouro, Corso Amcar. Apenas cumpra sua palavra. – Resmungou dolorosamente, ainda que honrada pelo reconhecimento.

Ergueram-se escorados um ao outro e assim partiram daquele antiquíssimo santuário negro; para trás, deixaram somente as moedas de prata espalhadas pelo piso negro banhado em vermelho, um pagamento simbólico ao mestre espoliado do guardião abatido.


§


Os dias seguintes passaram-se envoltos em uma névoa de memórias torpes. Quando se recuperou da febre provocada pelo ferimento inflamado, Ashlan descobriu que permanecia hospedada na Última Lanterna, sob os cuidados da anfitriã de olhos violáceos. Recordava-se vagamente do trajeto de fuga para além das profundezas do Rochedo e suas ruas ornamentadas. Quando saíram à superfície, o coreto estava cercado por um grupo de guardas de prontidão. Por um momento, achou que Amcar fosse abandoná-la pelo percurso conforme antecipara, mas o ladrão se revelou de uma firmeza moral exemplar. Saltaram juntos pelas trevas. A partir deste ponto, o frio causticante fragmentou suas lembranças. Arrastaram-se por becos enquanto os casacos-vermelhos logo se espalhavam como uma legião de chacais ruidosos em seus calcanhares. Ashlan agradeceu a importância dada por Corso em adquirir uma lanterna cuja luz não os revelasse. Desfaleceu.

Determinado em comprovar seu rigor moral, Amcar honrou o acordo combinado. Em sua cômoda de cabeceira, Ashlan encontrou um pequeno baú com precisas trinta e duas dragonas de ouro, dezesseis coroas de prata e quatorze lascas de quartzo azul bem lapidado; mais do que o suficiente para desfrutar o restante do outono e um inverno de confortos, reformar suas armas e armadura, ou se preferisse viajar para qualquer canto do velho Império. Madame Zenovia também assegurou que Corso havia coberto os custos por duas semanas inteiras de hospedagem. Dada a ampla generosidade, desconfiou que havia recebido a parte mais modesta dos ganhos do ladrão. De qualquer modo, duas semanas era tempo de sobra para decidir ficar ou partir. Uma cortesia e um convite. A vida de ladinagem tinha seus apelos.


§


Feitos os trâmites para entregar a gema escarlate a seu novo dono, Corso Amcar se ocupou em visitar seus associados para quitar suas pendências. Adquirir uma das Jóias de Nya'sh'huur não era tarefa para somente um ladrão, uma mercenária, um alfaiate de disfarces e um barqueiro. Havia a criada encarregada da rotina do Arquiministro. O médico responsável por dobrar seu entorpecente sonífero naquela ocasião. O guarda disposto a informar o itinerário dos casacos-vermelhos. Os espalhadores de rumores, certos de terem avistado um ladrão vestido como corvo e uma mulher nortenha tomarem barco para Hyarmire. Alguns destes aliados era conveniente que sua comparsa conhecesse; outros, era preferível manter discretamente ocultos. Aqueles que compunham os fios invisíveis da rede de influência de Lethari. Esta última visita era do segundo tipo. 

– Bons ventos e correntezas, meu amigo – Corso considerava o antigo cumprimento um tanto despropositado, já que a maioria das embarcações de Thamira somente remava Rhien acima e abaixo. Mas os embarcadiços gostavam da tradição. – Os negócios vão prósperos, espero.

– Saudações, sombra andante. – O capitão produziu um par de taças e uma garrafa de vinho quando se percebeu acompanhado na cabine. – Tão prósperos quanto possíveis, para um paraíso perdido. A Guerra dos Herdeiros traz muitos visitantes à nossas praias. – convidou o outro a se sentar com um gesto largo. – Espero que a encomenda tenha atendido suas exigências. As notícias de sua última expedição se espalharam rápido.

– Seus homens cumpriram seu papel – recusou o assento, mas degustou o vinho – ela estava tão persuadida da casualidade dos fatos quanto poderia estar. Suponho que foram convincentes porque foram sinceros.

O capitão deu de ombros ambiguamente.

– Algum dia seus jogos farão sentido, sombra andante. Suas peças se movem estranhamente no tabuleiro.

– O tabuleiro é apenas maior do que pode ver, meu amigo. Certas virtudes são raras em Thamira, e coragem é a mais em falta delas. Se vai contratar um serviço, é melhor que conheça sua qualidade primeiro, não concorda? – Deixou a bolsa de moedas sobre a bancada do velejador. O homem ergueu a taça em um brinde não correspondido.

– Em outra ocasião, meu amigo. Em outra ocasião. – Amcar deixou o convés do Muriella satisfeito com o encerramento dos seus assuntos. Que a mercenária jamais soubesse deste arranjo. Se coragem era uma mercadoria rara em Thamira, confiança era uma que nunca era comercializada. Era um luxo que ninguém podia se dar cercado de conspiradores e esfaqueadores rotineiros. Era parte do jogo. Afinal, nem a mais moral das pessoas na Cidade das Adagas poderia ser uma criatura tão honesta.