Duas coisas faziam de
Thamira infame como a Cidade das Adagas: as numerosas casas mercantes, que
tramavam golpes afiados umas contra as outras em suas reuniões, e as
incontáveis guildas criminosas, que apunhalavam seus habitantes menos
afortunados na calada da noite. Era uma cidade assolada por tratantes, punguistas,
receptadores, salteadores, embusteiros, usurários e toda sorte de indivíduo
tido como escória em outras partes do mundo. E era amada e odiada por isto.
Erguida em torno da
Baía do Tridente, suas três divisas da cidade podiam ser avistadas à distância:
o Rochedo, a Crescente e o Estaleiro. A parte mais elevada, o Rochedo, ocupava
uma longa falésia onde os abastados residiam sob a sombra do Forte Tridente. A
Crescente era oposta ao Rochedo tanto geograficamente quanto socialmente. Tinha
este nome pela forma que se espalhava na costa, mas também pelo odor salino que
a alta das marés impregnava em suas vielas. Entre os dois extremos havia o
Estaleiro, a mais peculiar das divisões de Thamira: uma aglomeração de milhares
de embarcações cujos conveses serviam como tavernas, bordéis, oficinas e
moradia para suas tripulações. Em meio às águas turvas da baía erguia-se a
estátua de Santa Thamira, a décima terceira maravilha do Império Andorano, uma
gigantesca donzela de pedra cercada por um cardume faminto de madeira.
–
Isto tudo já fora um paraíso – os passageiros do Muriella haviam escutado o barqueiro
pavonear a cidade um sem número de vezes. – Praias de cascalho cristalino
banhadas por águas reluzentes. Pássaros coloridos como pedras preciosas. Frutas
maiores que a cabeça de uma criança. Sol quente durante os dias, brisa fresca
todas as noites. – Manifestava saudades quase sinceras em sua nostalgia
imaginária. – Antes do Sopro de Faugnar, é claro. Antes das Cinzas. Mas era um
lugar onde os homens podiam viver como o Criador imaginou que deveriam viver.
–
Seu nome é Serise – inclinados sobre a balaustrada, dois rapazes
confraternizavam. – Veio de Lothal há um ano. Nos conhecemos no último dia da
hoste, no Canção da Harpia.
Teve que deixar a vila antes que o condestável lhe fizesse coisas. Se você a
visse... entenderia porque ele queria
fazer coisas. – Sorriram.
–
Os casacos-vermelhos são inofensivos. Se ficar longe do Rochedo, nunca vai ter
problemas com eles. – um senhor de mãos calejadas advertia aos companheiros de
viagem. – Os casacos-marrons, estes sim, são uns miseráveis. Vão arrancar o
trabalho duro de um homem, e se ele não tiver nada a oferecer, vão arrancar
seus dentes pelo desacato.
Um
fidalgo evidentemente em maus tempos oferecia toda sorte de regalias a uma dama
pouco donzela. Uma jovem cavalariça cuidava das necessidades de um par de
cavalos no nível inferior, cujo odor de confinamento subia pelos vãos do casco.
Quatro embarcadiços tomavam conta das velas enquanto o barqueiro conduzia o
leme. Todos se misturavam à sua maneira à Cidade das Adagas, fossem modestos ou
pretensiosos em suas aspirações. Todos sabiam que a discrição era a virtude da
ordem ali.
A
guerreira em armadura, por sua vez, destoava como um urso em um salão de dança.
Embora houvessem muitos estrangeiros na cidade, era claramente recém-chegada:
faltava-lhe a queimação típica dos que viviam sob o sol da costa. Os cabelos
pálidos, o rosto ríspido e a manta de peles enrolada à cintura estampavam suas
origens nortenhas; a espada pendurada ao ombro e estatura impressionante
estampava sua natureza belicosa. Contudo, o que realmente a destacava dos
outros era a grave indiferença às figuras escusas dispostas pelos cantos. O
barco atracou à hora do ocaso na Crescente. À hora da penumbra, os olhares
irascíveis que a vigiavam cruzar as docas haviam crescido exponencialmente.
–
São duas coroas pelo registro. Seu nome e propósito? – O encarregado da
plataforma avaliou a visitante com partes iguais de desprezo e desdém, quando
chegou sua vez à fila.
–
Ashlan, uma Drúan do Norte. Venho como mercenária. – A guerreira também
inspecionou o sujeito aprumado antes de abrir a bolsa. Intuiu que estava sendo
extorquida de alguma forma, fungou contrariada, mas deixou os nove leões de
prata sobre a bancada, consideradas as taxas de conversão. O preço desonesto da
civilização.
–
Você parece o que diz. – Recolhida a
taxa de desembarque, o encarregado despachou a requerente.
Ashlan
caminhou pelas passarelas suspensas do porto livre de um fardo. Armaduras e embarcações
não eram boas amigas, e toda a descida pelo Rhien fora severamente exaustiva.
Seus planos se resumiam a encontrar uma boa hospedaria para descansar o
restante da noite, e no dia seguinte, se embrenhar pela cidade com o intuito de
transformar seu aço em ouro. A princípio, imaginou que as carrancas que a
observavam fossem o estranhamento de homens desacostumados a mulheres-de-armas,
como já acontecera em outros lugares antes. Porém, quando seus dois
acompanhantes na escuridão se tornarem quatro, em seguida seis, e mais algumas
esquinas adiante uma dezena, concluiu que teria de mudar de planos.
A
súbita perspectiva do confronto reinflamou seu ânimo. A estrangeira se enfiou
rapidamente por um beco para forçar a abordagem dos espreitadores por uma única
fronte. Talvez acabasse por marcar sua chegada à Cidade das Adagas de forma
sangrenta, afinal.
–
Venham, corvos. Venham tentar a sorte. – Virou-se para a entrada e brandiu a
espada convidativamente.
Os
membros ao fundo do bando forçaram aqueles mais adiante a responderem o
convite. Estes resistiram instintivamente ao movimento, incertos sobre
arriscarem as próprias vidas com tanta avidez. As faces reveladas pelo luar
eram compostas por olhos de rapina, feições predatórias e narizes quebrados;
além das aparências embrutecidas, estavam todos decididamente armados, fossem
com as famigeradas adagas, porretes, ou mesmo pedras às mãos.
–
Permita-me fazer uma cortesia e um convite, milady. – A resposta veio de uma
voz aveludada às costas da guerreira. Ashlan girou sobre os calcanhares de
imediato, surpresa que alguém estivesse ali sem que tivesse notado. Vislumbrou
uma forma esguia e encapuzada, que deixou as trevas como se cruzasse uma
cortina. – Ajudo-a a viver aqui e peço apenas que faça o mesmo por mim outra
noite. – Complementou a fala com as mãos espalmadas em sinal de paz.
–
Posso matar o suficiente para darem meia-volta – o anúncio enfático reteve os
salteadores à distância. Pareciam ignorantes à segunda presença na viela,
talvez incapazes de diferenciá-la da escuridão dominante.
–
É possível que sim, milady. Mas uma turba de assaltantes como esta sabe que só
é preciso um golpe certeiro para o mais blindado guerreiro cair. – O capuz
negro encobria por completo o rosto do estranho. O corpo estava revestido em
couro igualmente negro, cortado sob medida e ornamentado por múltiplos bolsos
afivelados. Na cintura, pendia o rebuscado guarda-mão de um sabre embainhado,
acompanhado por um punhal de cabo de marfim. Além da aparência refinada, tinha
os movimentos calmos de um felino sossegado, uma parte sutilmente calculada de
sua elegância obscura. – E nem tudo aqui é como parece.
Uma
indicação de relance foi suficiente para Ashlan perscrutar as telhas ao redor.
Distinguiu um trio imiscuído sob o céu noturno quase a postos para alvejá-la
com tiros de besta. Podia escalar ligeiramente para os telhados, mas isto a
deixaria vulnerável por momentos fatais ao bando no chão. Por outro lado, se
permanecesse ali, seria alvo fácil às setas. – Além disso, acrescento ouro à
proposta. – O homem concretizou a oferta diplomática.
–
Este é um acordo melhor. – A guerreira assentiu com a cabeça. – Você tem minha
palavra.
–
Corso Amcar, milady, a seu dispor. Podemos? – Estendeu a mão.
–
Bem, eu chamei por corvos. – Suspirou sardonicamente e esticou a manopla em
retribuição. – Um realmente veio. Eu sou Ashlan.
Tão
logo trocaram cumprimentos, ambos desapareceram do mesmo modo misterioso que o
ladino surgira, envoltos por uma mortalha sombria. A estupefação dos
salteadores deixou evidente o caráter sobrenatural da arte de Amcar. O ladino
conduziu a Drúan para além do beco, ignorando os obstáculos pelo caminho como
se fossem dois vultos fantasmagóricos, até se desfazer de sua mão; então um
frio de morte atingiu o corpo da guerreira, percorrendo-a impiedosamente até o
interior dos ossos. O homem também soprou um hálito gélido ao recobrar o
fôlego, estremeceu, mas se recompôs prontamente da travessia. Ashlan esboçou
uma expressão aborrecida de questionamento, mas o ladino se antecipou em
resposta, ainda azul de frio.
–
Ossos do ofício, milady.
Caminharam
céleres pelas plataformas corroídas e vias estreitas, deram voltas para iludir
quem pudesse segui-los e se dirigiram às luzes de uma pequena casa elevada, que
se revelou uma discreta taberna. Durante o percurso, Ashlan passou a observar o
seu guia com um crescente e inevitável senso de precaução. Entendia pouco das
artes ocultas, mas conhecia o suficiente para saber que nada de bom vinha deste
ofício. O preço que cobrava na alma dos seus usuários era, deveras vezes, alto
demais. E sabia que aquele homem a envolveria em suas dívidas. Ainda assim,
tinha dado sua palavra. Portanto, o seguiu.
§
Desvencilhado
do capuz, Amcar revelou-se um homem mais velho do que sua boa forma indicava.
Possuía o rosto magro, marcado de linhas do tempo, e o escuro dos cabelos
ondulados apresentava manchas grisalhas. Os olhos eram tão negros quanto suas
vestes. Uma das orelhas tinha sido mutilada. O dedo mínimo não se movia sob a
luva da mão esquerda. E mesmo encobrindo parte do rosto com um cavanhaque bem
aparado, uma longa cicatriz cortava-o do queixo até o lábio inferior. A Drúan
suspeitou que muitas outras cicatrizes talhassem sua pele por debaixo da
armadura. Embora no Sul fossem vistas como desfigurações, no Norte elas eram
reconhecidas pelo que eram: as marcas de um sobrevivente.
Segundo
Amcar, a Última Lanterna era um dos mais confiáveis refúgios na Cidade das
Adagas, onde podiam descansar e se recompor sem pressa. A adega era
suficientemente silenciosa e aconchegante para valer sua reputação. Não
comportava mais de uma dúzia de clientes, e os únicos presentes no momento eram
os dois recém-conhecidos, além da própria anfitriã. Conforme relatado por
Corso, Madame Zenovia era quase parte do folclore de Thamira: diziam que seus
olhos de cor violeta eram consequência dos pactos que fizera para aprender sua
feitiçaria. A coleção de máscaras de porcelana atrás de seu balcão colaborava
com sua aura de mistério. Diziam que podia mudar o rosto de qualquer homem ou
mulher. Verdade ou não, Amcar tratava-a com mais cortesia de que algumas
rainhas receberiam em suas cortes.
–
O capitão do barco deveria tê-la prevenido. Os guílderes do porto têm por
hábito acossar assim que possível àqueles que parecem demasiadamente abastados e
sem escolta. – Devaneou por alguns instantes. – O Muriella, você diz? É bem
provável que o capitão estivesse em conluio por uma parte dos espólios.
–
Conheço o tipo. Homens covardes escondidos sob uma fachada amigável. E minha
bolsa teria causado mais prejuízo do que benesses. – A estrangeira pausou para
se refrescar com o vinho amargo em sua taça.
–
Suas armas e armadura certamente foram forjadas em um castelo, milady. Para os
homens comuns de Thamira, isto é riqueza o suficiente para inspirar mais cobiça
que respeito.
A
guerreira bárbara deu de ombros.
– Pois bem, Corso Amcar. O que você quer?
–
Já que insiste – o ladino respondeu condescendente – nós vamos roubar um
recipiente, milady.
–
Um vaso? E isto é importante por quê? Alguém o tem como valioso, eu suponho. –
Encheram as taças novamente.
–
Mais do que suspeita, milady. – Mastigou lentamente uma fina fatia de pão
azeitado. – Alguns diriam que é sem preço. Infelizmente, está guardado em
condições deveras específicas; ou melhor, por um dono particularmente perigoso.
–
Hum. Ainda assim, não creio que foram meus traquejos de ladra que o cativaram.
– O sarcasmo arrebatou um sorriso suave do ladino. – O que você realmente quer?
E de quem vamos roubar?
A
anfitriã trouxe à mesa uma nova jarra de bebida e uma travessa de figos. Corso
agradeceu-a com um gracejo em vestiniano. Seu olhar penetrantemente perturbador
foi prova suficiente a Ashlan que os rumores eram verdadeiros.
–
Furtar dos poderosos requer certas garantias, milady. E embora meu ofício seja
tradicionalmente solitário, neste caso é preciso fazer uma exceção pelo sucesso
da empreitada. Quanto a vítima, se trata de Sua Excelência Iluminada de
Thamira, o Arquiministro Alberus Vercion. E por fim, meus olhos me dizem que
mesmo debaixo de todo o aço, há uma caçadora das montanhas. Com pés que pisam
leve tanto nos vales quanto na cidade. – Desta vez, foi o ladino quem fez uma
pausa para refrescar a garganta. – Faz algum tempo que vigio as docas, milady.
Sua chegada foi providencial.
–
Um guarda-costas? – Ashlan apanhou uma fruta da travessa. – Me parece mais que
precisa de um bode expiatório. Alguém para deixar para trás enquanto foge pela
escuridão, caso seus planos deem errado.
–
Ah. Eu realmente não confiaria minha segurança a alguém cuja mente também não
fosse perspicaz. – O sorriso suave cresceu afetuosamente. – Fico satisfeito que
minha intuição tenha sido correta.
–
Sorte sua, velha raposa. – A guerreira retribuiu a condescendência com outro
longo trago de vinho. – Pelo menos, você já ouviu falar do meu povo. Se tiver
ouvido o bastante, deve saber que meus ancestrais me ensinaram que a ocasião
faz o ladrão. – Sorriu seu próprio sorriso lupino para o fundo da taça vazia.
§
Ocuparam-se
por três dias com preparações. O primeiro foi uma extensa busca pela vastidão
labiríntica do Estaleiro. Se outrora fora paradisíaca, a aparência e odor atual
da baía podiam ser comparados ao inferno, um que servira como latrina para
milhares de pessoas por meia-dúzia de séculos. Além de sua distribuição
geográfica distinta, a Cidade das Adagas tinha sua própria forma de infestação:
as incontáveis gaivotas que se alastravam entre os barcos. Logo, Ashlan
descobriu que trafegar pelas embarcações também era perversamente
desorientador: a constante mudança de posições tornava impossível para qualquer
recém-chegado definir um marco confiável por mais de meia-hora.
Amcar
estava à vontade como o vento na campina. Movia-se como um dançarino entre os
cascos flutuantes e parecia ser íntimo da maior parte do baile. Apesar disto,
demoraram a encontrar o que procuravam, até ouvirem falar de um certo
Isalim-ab-Azam: um comerciante Semírio que erguia vela somente do anoitecer à
alvorada. Encontraram a barca esguia e curvilínea sob a lua alta; Isalim
atendia aos clientes detrás de camadas de cortinas, e afora sua pele escura e
sotaque melífluo, era irreconhecível. Corso estava familiarizado com seu idioma
lírico; ignorante à conversa entre cliente e comerciante, Ashlan se entreteve
com as prateleiras abarrotadas de ninharias: sedas finas como teias de aranha,
empalhamentos de estranhos macacos pigmeus, areia que se movia como serpentes
quando soprada. Pagaram uma pequena fortuna por um conjunto delicado de
ferramentas e uma lanterna de vidro azul que Corso chamou de “olho-de-gato”, o
principal motivo de toda a longa procura. Garantiu a Ashlan que era
imprescindível à tarefa, e que se surpreenderia com suas propriedades.
No
dia seguinte, visitarem a orla da Crescente, desta vez com destino certo. Foram
até uma pequena alfaiataria comandada por um cavalheiro Orvisiano de nome
Vallouis. O alfaiate tirou as medidas da Drúan minuciosamente enquanto
protestava sobre a impossibilidade de costurar o que lhe fora pedido no prazo
solicitado. Após o ladino oferecer outra pequena fortuna, os protestos
rapidamente se tornaram resmungos resignados.
O
restante do dia foi destinado a explicações daquilo que Amcar julgava essencial
sobre Thamira: como achar um guia confiável no Estaleiro; os crimes passíveis
de punição na cidade, e os subornos considerados razoáveis pelos guardas; os
territórios dos Ratos de Beco, Navalhas Negras, Martelos
Quebrados, Capuzes Noturnos, o Crânio, e suas guildas subordinadas; os
barcos que jamais deveriam ser visitados; as tavernas onde sempre se podia
encontrar asilo; os sobrenomes que era melhor evitar no Rochedo; e as mesas de
jogo onde se podia ganhar alguma prata de maneira quase honesta.
No
terceiro dia, a Drúan teve tempo para explorar a cidade sem a companhia de seu
instrutor expedito. A ausência de Amcar exigiu olhares afiados contra
pretensos aproveitadores, repetidas deferências contra mercadores insistentes e
o auxílio de um jovem guia bem-pago. Neste ínterim, procurou saber sobre o
Arquiministro por conta própria. Era reverenciado como geralmente o são as
autoridades eclesiásticas, visto o temor que a maioria dos homens possuía de
seus sacerdotes. Ashlan nunca se incomodara com isto; entre seu povo selvagem,
somente os Ancestrais podiam julgar o espírito de alguém, e qualquer outra
hipótese seria tratada como tolice. Esta tendência insolente a colocara mais de
uma vez às portas da heresia; mas também a ensinara a achar amizade fácil entre
os malquistos pelo clero. Assim, após algumas rodadas de cerveja, ouviu em meio
às acusações típicas de sadismo, pederastia e sodomia, uma história sobre
cerimônias orquestradas pelo Arquiministro em seu palacete, onde bebia de um
cálice profano e consultava oráculos antigos. Se era esse o caso, a Drúan
compreendeu bem porque Amcar fazia questão de manter suas intenções ocultas.
Passou
enfim sob a sombra colossal da donzela de mãos suplicantes, já ao enrubescer do
crepúsculo. Ali debaixo, era possível perceber quão grandiosa a imagem da Santa
era: tinha pelo menos setenta metros de altura do nível do mar até o capuz, e
apesar do vento, as ondas e a chuva terem-na flagelado severamente, suas
rachaduras eram admiráveis à sua própria maneira. Para a selvagem estrangeira,
eram sinal de que a natureza havia lhe atirado seu pior, e ela havia resistido.
Era forte como a montanha. E se sobrevivera a todos estes testes, seria eterna
como a montanha.
A
seu pedido, o guia barganhou até conseguirem passagem para o interior da ruína.
A escadaria de manutenção era velha demais para ser utilizada, mas as mãos da
guerreira encontraram seu caminho pelas vigas até a parte mais alta da
estrutura. Um portículo enferrujado dava acesso ao vão entre o capuz e o
pescoço da estátua, onde havia um espaço confortável para se reclinar. Ashlan
apreciou o vento frio e a quietude solitária. Como em todos os Drúan, havia um chamado
obstinado em seu sangue para ver o mundo do topo. Sentada sobre os ombros
do colosso, eventualmente foi tomada por uma profunda melancolia. Seus
pensamentos vaguearam entre a grandeza do que os homens podiam realizar e a
pequeneza que se contentavam viver. E embora não fosse seu hábito pensar além
do hoje, devaneou sobre seu próprio destino, e se ainda alcançaria alguma
distinção para si mesma. Então, se lembrou como a grandeza de todos os
guerreiros era obtida, e como ela sempre se parecia com um oceano vermelho.
§
Às
vésperas da meia-noite, três vultos indistinguíveis sob a lua minguante se
moveram pela Baía do Tridente: o barqueiro em uma velha manta negra, o ladino e
a bárbara envoltos no carmesim dos casacos-vermelhos encomendados no dia anterior.
A barca contornou vagarosamente o Rochedo até sua face exterior, e abandonou a
aglomeração do Estaleiro até cruzar a ponta da península, onde as falésias se
erguiam a mar aberto. A balsa parou debaixo de uma ampla grade de dejetos à
meia altura do paredão. Corso acertou o preço do serviço e do silêncio do
barqueiro de sua maneira costumeiramente generosa. Em seguida, os dois
passageiros subiram por degraus naturais até as barras maciças.
Diante
do gradeado, o ladino buscou em seus bolsos uma ampola de vido esfumaçado
preenchida por um pó cobreado. Aspergiu a nuvem cintilante à sua frente,
retrocedeu um passo atrás trazendo a bárbara consigo, e observou pacientemente
a reação alquímica entre os dois metais: um processo acelerado de corrosão que
de outro modo levaria décadas ou séculos para ter seguimento. Quando suas mãos encostaram-se
às grades, elas se partiram com um esforço leviano.
Lançaram
pela entrada do túnel, enquanto Corso retornava a passagem a uma aparência
minimamente inteiriça com alguma espécie de óleo esfregado nas partes onde se
esfarelara. Terminado o meticuloso trabalho, estendeu para a comparsa a
lanterna olho-de-gato. Assim que ergueu a peça cristalina, Ashlan viu que emitia
um facho luminoso azulado que era incapaz de enxergar anteriormente. Amcar
abriu mais uma vez seu sorriso complacente para a inegável desconfiança no
semblante da bárbara.
Ambos
se inclinaram adiante, enrolaram as capas nos ombros e afundaram as botas no
excremento da aristocracia Thamiriana. A caminhada foi silenciosa, e em sua
maior parte os ratos, vermes, insetos e outros inquilinos locais pareceram
pouco incomodados com os visitantes. Os corredores semicirculares eram tão
tortuosos quanto se podia esperar; Corso, todavia, transitava com a calma de um
navegador familiarizado ao terreno. Atravessaram encruzilhadas, tanques de
drenagem, passagens seladas e câmaras esquecidas à revelia do tempo. Após um
quarto de hora, concordaram tacitamente sobre os outros pares de passos que
acompanhavam sua marcha. Sem necessidade para mais subterfúgios, seus
observadores se manifestaram.
– Vocês não são guardas. Vocês são ladrões e
intrusos. – Uma figura em trapos que um dia foram calças e um colete se
arrastou morosamente da interseção mais imediata. – E como todos os ladrões,
vocês deveriam saber que é preciso pagar para cruzar o território de outra
guilda.
Mais
vultos lânguidos e encardidos se arrastaram detrás da silhueta esfarrapada. Os
ouvidos treinados tanto do ladino quanto da bárbara perceberam uma peculiar
quietude geral; como se os ratos também tivessem decidido se calar para
observar a reunião. Seus pequenos olhos vermelhos se somaram a outros maiores e
mais ferozes.
–
Excelente. Mais carniceiros.
–
Estes são de um tipo diferente dos corvos, Lady Ashlan. – Corso abrandou a
companheira. Depois, desembainhou rapidamente sua cortesia usual.
–
Ouvi dizer que os Rastejantes haviam abandonado o Rochedo. Que a curiosidade do
Inquisitório tinha os expulsado e os túneis estavam vagos. Fico contente por
ter ouvido errado.
–
Nós não fomos expulsos, mestre ladrão. Nós fomos caçados. Mas a Hoste se repõe
rápido. Nós somos muitos e
implacáveis. – A figura se aproximou o bastante para se revelar em
detalhes. Um largo chapéu de palha cobria o topo do rosto alongado; um
emaranhado de cabelos esbranquiçados caia por sobre seus ombros; e um largo
amuleto do Iluminado parecia ser a única coisa que pesava em sua carcaça
esquálida. Ashlan notou que as ratazanas não somente rodeavam seus pés, como
também se moviam confortavelmente sob seus farrapos, agarradas a seus braços
magros. – E sua simpatia não significa nada aqui, Sombra de Lethari. Há um
pedágio a se pagar. E vocês pagarão.
–
Não trouxe nenhum presente apropriado para a ocasião, caro anfitrião. Meu erro,
eu confesso. Mas nós nos conhecemos de longa data, Lazerach. Assim, em nome das
tradições antigas, eu o peço respeitosamente por um desafio de esfinge. – Fez
uma pausa para dar peso à proposta. – Pergunte o que desejar, e se a resposta
for verdadeira, receberemos livre passagem. Caso contrário, pode ficar tudo
aquilo que lhe interessar. Como é o costume.
–
E nós simplesmente devemos honrar este arranjo? – Lazerach descascou
tediosamente a pele dos dedos anormalmente longos. – Os tempos mudaram. Os
mortais já não respeitam mais os costumes antigos. Por que ao invés disso não
torcemos seus pescoços, e tomamos tudo que nos interessa, do mesmo modo?
– Minha
sombra persistiria para levar notícias em meu nome, caro anfitrião. E o
Conselho dificilmente aprovaria tal conduta por parte da Hoste. Da parte da
minha acompanhante, digo que ela não me parece o tipo que se deixaria esganar
sem uma luta feroz antes. E você sabe quão perigosos se tornaram os mortais,
estes dias.
– Não gosto desses termos, Amcar – Ashlan
murmurou entre os dentes. Àquela altura, todos os caminhos da interseção já
estavam repletos de vultos Rastejantes. Moviam-se como uma única criatura à
espreita, suas diversas partes se ajustando calculadamente em antecipação ao
bote. E a bárbara estava no papel da presa paralisada à espera do abate. O
ladino se contentou apenas em gesticular moderadamente. – Seja paciente,
milady.
–
Seu Conselho é insignificante para a Hoste Rastejante, Sombra de Lethari. Nós
estávamos aqui antes dos seus mestres chegarem e continuaremos aqui quando seus
ossos virarem pó. – O homem esfarrapado estalou meditativo as falanges dos
dedos. Seu olhar pousou sobre a lanterna, as armas e os casacos vermelhos.
Corso sabia que havia o atingido na fraqueza de todos os ladrões: a ganância. –
Mas faremos como pede. – Enfim, os lábios rachados formaram um fino sorriso
laminiforme. – Que seja prova que a Hoste também sabe jogar os jogos da
superfície. Nós o concedemos o direito à esfinge.
–
A sabedoria da sua escolha não será esquecida. Nós nos submetemos às suas
palavras, anfitrião.
Lentamente,
Lazerach circundou os convidados enquanto assobiava uma antiga melodia infantil
sob seu chapéu de palha. Cochichos ininteligíveis foram trocados entre os
Rastejantes, e o anfitrião interrompeu-se somente para esboçar risos de algumas
sugestões, ou considerar pensativamente outras. Eventualmente, ergueu uma mão
como o orador que pede atenção à plateia. Suas palavras seguintes foram
anunciadas na mesma harmonia macabra de sua canção.
– Ouça bem, pois o que digo é
inegável verdade: de navalhas afiadas é seu sorriso, do espelho quebrado sua
face. Para o louco é a visão inescapável do tormento; para o são, a terrível
maldição da eternidade. Deveras sê contemplada, mas nenhum homem ou mulher jamais
a toca, somente a escuridão; que sempre a tem pela metade.
O
anfitrião se curvou e retrocedeu às sombras que o guardavam. Ashlan deslocou o
peso do corpo de um pé para o outro e observou Corso na expectativa de que as
palavras lhe significassem algo. O ladino se retraiu em uma intensa ponderação
interior. Moveu os lábios, mas não pronunciou nada audível; apenas alisou
cuidadosamente a empunhadura ornamentada do sabre em sua alienação.
Para
a guerreira, ou o homem estava se despedindo de seus bens queridos, ou
sinalizando uma súbita retirada. Ficou claro em seu olhar vago que a pergunta
do anfitrião imundo era maliciosa o bastante para ser de natureza
irrespondível, ou possuir mais de uma resposta. Fosse como fosse, ela sabia o
que fazer.
Portanto,
passados alguns instantes de um silêncio abismal, um dos Rastejantes se
pronunciou a frente para investigar a lanterna azul empunhada por Ashlan. A
Drúan concluiu que havia esperado o bastante: no tempo de uma respiração, ela
chutou o Rastejante para longe, luziu a espada para fora da bainha, e respondeu
ao enigma a seu modo barbárico. A lanterna foi ao chão, e o último fiapo de luz
se extinguiu por completo nos túneis. Houve gritaria, guinchos e baques surdos,
numerosos o bastante para abafar a voz de Amcar enquanto suplicava – Não, Ashlan! – Alguém desfaleceu na canaleta
central da interseção, chiados se misturaram ao som de ossos quebrados, até que
a voz rosnada de Lazerach irrompeu acima do caos.
– Já chega! Deixem os!
A
agitação foi bruscamente interrompida. A guerreira Drúan agachou para recuperar
a lanterna, cuja flama azulada iluminou um rapaz com uma mão decepada, uma
mulher e dois homens trespassados, Corso armado com seu sabre prateado e um
garoto de nariz ensanguentado agonizante. O ladino tinha alguns arranhões no
rosto, e parte da capa da bárbara fora rasgada, mas apenas o orgulho de ambos
estava seriamente ferido.
–
Deixem os ir.
A
satisfação incontida de Lazerach escorreu como ácido nos ouvidos de Amcar e a face
injuriada do ladino expressava a sensação efervescente. Em obediência ao
mestre, a Hoste Rastejante recuou para os recantos do esgoto de onde havia
despontado. Lazerach fez um cortejo exagerado ao conceder passagem. O ladino
moveu-se adiante pelos túneis. A bárbara seguiu em seu encalço, voltada para a
retaguarda apenas o suficiente para captar de relance os indivíduos que havia
brutalmente trespassado tossirem e se levantarem, enquanto o amputado recolhia
a mão caída ao chão. E teve certeza que viu os músculos e os ossos se esticarem
para se encaixar novamente no corte ensanguentado.
Já
haviam se demorado demais sob a guarida daquele anfitrião e a celeridade era a
ordem da vez. Ainda assim, embora tivessem se afastado um bom número de passos
do local do encontro, as últimas palavras de Lazerach os alcançaram cristalinas
pelos subterrâneos.
–
Ora, Sombra de Lethari. Quem está em dívida com o seu precioso
Conselho agora?
§
–
Nós teremos de temperar sua fúria, se pretende seguir no ofício da subtração,
milady – o ar fresco da superfície reanimou o par o suficiente para voltarem a
se falar.
–
Vocês têm suas regras, seus conselhos e suas esfinges. Eu tenho o meu instinto.
Fiz o que achei que devia para escaparmos...
–
Eu sei, Lady Ashlan dos Drúan. E reconheço o mérito da ação. – Suspirou com
mais resignação do que concordância. – Mas um leão da montanha que desce à
planície não morre porque desaprender a caçar. Morre porque todos os outros
animais sabem, antes mesmo que possa se aproximar, que é um estranho ali.
A
metáfora de Amcar pareceu concatenar algum significado na mente da Drúan.
Estavam ocupados em se lavar em uma das inúmeras fontes de alabastro que
decoravam as praças do bairro aristocrata: esta, em particular, um largo
chafariz adornado por um tritão e um círculo de nereidas, agora escurecido
pelos dejetos raspados das botas que o visitavam.
–
Onde fica Lethari? – Quando terminaram de se limpar, estavam em bons termos um
com o outro novamente.
–
Não é um lugar. – Reajustou as fivelas da armadura. – E a resposta era...
Soaram
os sinos da segunda hora da madrugada na Catedral das Santas Súplicas. Sem
disposição para mais delongas, bárbara e ladino prosseguiram discretamente
pelas ruas impecavelmente pavimentadas do Rochedo. Os casarões, solares e
palacetes compunham uma variedade ímpar de estilos arquitetônicos: o clássico
Andorano, o intricado Orvisiano, a sobriedade Castenica, as cúpulas esféricas
Semírias e a suavidade Vestiniana eram um mosaico extravagante das nações
agregadas pelo antigo Império. Flâmulas pendiam da maior parte dos portões, bordadas
com animais que denotavam as virtudes de suas Casas ou objetos que indicavam a
natureza de seus negócios; mas pelas condições paupérrimas abaixo da península,
Ashlan tinha convicção que nenhuma nobreza verdadeira vivia ali.
Os
casacos vermelhos produziram o resultado esperado: pela hora que chegaram ao
palacete do Arquiministro, as patrulhas com que cruzaram se resumiram a
cumprimentos distantes ou absoluta condescendência. As grades em torno do
casarão eram tão altas quanto se podia esperar, mas ao circularem-no Amcar
dirigiu-se a um portão menor de serviços. Suas ferramentas mostraram-se úteis novamente,
e após um conjunto de cliques sequenciados, desarmaram a tranca metálica.
Em
tempo, haviam se embrenhado pelas bem-podadas cercas vivas que ornamentavam o
jardim de Vercion. Em tempo, Ashlan desviou-se do vulto feroz que se lançou
sobre os invasores. Era de pelugem lustrosa negra, musculatura robusta, focinho
avantajado e veloz o bastante para dilacerar sem aviso a garganta de qualquer
um que não tivesse um reflexo igualmente animalesco; um matador mais do que
capaz em forma de cão de guarda. O segundo vulto saltou sobre seu braço, mas a
reação da bárbara foi suficientemente ágil para rolar com o animal no solo, e aquietá-lo
com um golpe de punhal enterrado no peito. O terceiro e quarto contornaram mais
cautelosamente seus alvos, dotados de uma aguçada inteligência predatória.
Desvendada
essa sagacidade perversa, a Drúan travou olhares com os cães. Agachou-se
lentamente até estar à altura de seus focinhos. Flexionou as pernas e se apoiou
em uma das mãos, atingindo um equilíbrio singular entre prontidão e
ofensividade. Os cães circundaram mais uma vez sua potencial vítima, exibiram
os dentes afiados, arriscaram rosnados intimidadores, mas eventualmente cederam
à única mensagem que seu alvo comunicava: ela não se dobraria. Quando o maior
dos cães avançou pata-ante-pata em sua direção, ela riscou a adaga carmesim no
chão e a deixou à mostra sob o luar. Para Corso, pareceu que a bárbara estava
exercendo algum tipo de encantamento ritualístico sobre os animais. Com efeito,
o encantamento resultou na fera maldosa agachada aos pés da guerreira, para em
seguida rolar com o ventre para cima. Depois de um afago, os animais debandaram
às pressas pelo jardim.
–
Excelente trabalho, milady.
–
Meu pai era chamado Cão-Negro em seus tempos de guerreiro. Eles somente
reconheceram nosso parentesco distante – tracejou um sorriso indulgente.
Seguiram
pelas muralhas verdejantes por onde não poderiam ser avistados das janelas do
casarão. Sob a cobertura do coreto central, uma hoste de anjos conclamantes
estava petrificada em granito polido. Amcar girou a escultura sobre o pedestal
de forma a acionar algum mecanismo que imediatamente fez saltar um par de
tábuas do assoalho. Abriram cuidadosamente o alçapão secreto para revelar uma
escadaria em espiral. A rapidez da descoberta confirmou à Ashlan que Amcar era
de fato digno do título de mestre ladrão.
Desceram.
A escadaria serpenteou por degraus estreitos engastados na própria pedra do
Rochedo, em torno de paredes entalhadas por uma escrita obscura demais para
significar algo a qualquer leigo. À medida que a escuridão espiralada se
intensifica em densidade, outra certeza se formava à guerreira estrangeira: a de
que adentravam o ventre de uma besta que não gostava de ser perturbada.
Por
fim, a descida desembocou em um alto arco sustentado por pilares marmóreos. Um
passo além da entrada, estavam em uma câmara tão ampla quanto o olho-de-gato
era capaz de iluminar. Grandes pilastras escuras em forma de gigantes
megacéfalos, parte homens, parte quirópteros, sustentavam o salão. Ao
acompanhar a parede, Ashlan identificou que era circular e outros arcos se abriam
em intervalos regulares. Tanto o teto quanto o assoalhado pareciam feitos de
uma peça única de obsidiana, embora houvessem largas cavidades arredondadas ao
longo cobertura, similares à alcovas. Não demorou muito para que a Drúan
concluísse que aquela obra não poderia ser fruto do trabalho humano: suas
trevas, seu silêncio e seu vazio eram inescrutáveis demais. Aquele lugar
pertencia a eras mais antigas que os homens, quando outros arquitetos moldavam
o mundo. Percebeu então que não haviam mergulhado nas entranhas de uma besta
tenebrosa. Tinham penetrado nas profundezas de um templo.
–
Corvos, ratos e morcegos. Deviam chama-la Cidade das Pragas – sua filosofia
cínica manteve-a com os pés no chão. – Não devíamos estar aqui.
–
Se fossemos somente onde nos é permitido, não seriamos ladrões, milady – os
olhos de Amcar reluziram como duas contas inebriadas de cobiça. Adentraram pelo
salão até distinguirem uma nova silhueta no negrume: um cilindro esculpido a
partir do mesmo bloco maciço que tudo o mais, com cerca de um metro de altura,
e pelo menos seis metros de diâmetro. Ashlan reconheceu seu conteúdo pelo forte
odor ferroso muito antes de aproximarem; a cor vermelha escura do líquido que
preenchia o tanque até a borda extinguiu qualquer sombra de dúvida. Tinha
múltiplas marcas arranhadas por toda a beirada, o que para a Drúan indicava que
era mais do que um tanque; era também um bebedouro.
– Este é seu recipiente? Nós podemos ser
ladrões, mas não há como levar isto, Amcar.
– Ouça
com atenção, milady. Há um guardião aqui. É cego, mas escuta muito bem.
Seja silenciosa. Use seus pés de Drúan – o ladino passou a despir-se do casaco,
a parte superior da armadura, botas, ferramentas e sabre. – Eu retornarei em
breve.
–
Já chega, Amcar. Eu prometi acompanha-lo em troca de ouro. Não em troca de
segredos, charadas e profanidades...
–
Silêncio agora, Lady Ashlan. – Escorou-se na margem do tanque, e mergulhou.
Tão
logo que a primeira onda escarlate transbordou além da bacia, um alarmante
brado estridente, poderoso como o som de mil demônios gritantes, ressoou pelo
salão. Garras chisparam ruidosamente a obsidiana antiga da parte superior do
salão. Asas coriáceas se esticaram ao som de ossos entorpecidos estalados. O
aço riscou o couro da bainha em resposta. Algo saltou do teto para uma
pilastra, e da pilastra, para o
ar.
A
forma alada rodopiou pela câmara e atirou-se contra quem havia
perturbado a placidez do seu altar. Ashlan seguiu a recomendação de seu
comparsa e, numa mescla de rapidez e furtividade, se afastou em direção às
pilastras ingentes. Um breve lampejo do guardião foi revelado pela lanterna
azul: uma criatura abrutalhada, albina e despelada, de peito largo e volumoso
como um touro, com asas estiradas providas de uma única garra no lugar dos
membros superiores, mas pernas humanoides atrofiadas onde deveriam estar os
inferiores. Sua cabeça era uma carranca desproporcionalmente agigantada de
morcego, deformada, entretanto, por dois bulbos inchados que ocupavam o lugar
dos olhos. Em oposição à cabeça, uma longa cauda bífida, fina e escamada, se
projetava do cóccix como um par de chicotes vivazes.
O
protetor do templo disparou em uma nova investida raivosa contra a selvagem.
Ligeira, a guerreira moveu-se lateralmente, mas a besta estendeu uma das asas e
lançou-a violentamente para trás. Para a criatura, o impacto da armadura de aço
com o assoalho tilintou como os sinos da Catedral das Santas Súplicas acima;
ela ganhou altura em uma das colunas, e lançou-se outra vez contra sua
oponente. A Drúan recuperou-se a tempo de não ser esmagada, mas não de evitar
que uma das garras cravasse seu ombro ao chão. Seu urro lancinante elevou os
ecos que soavam pelo salão a mil e um demônios gritantes.
A
dor profunda despertou na Drúan o frenesi primitivo que acometia seu povo
bárbaro antes de se entregarem à morte. Ela golpeou sucessivamente a
monstruosidade albina com os joelhos e os punhos, uma, duas, três vezes, até
que um dos golpes acertou seu crânio detrás da orelha, e uma das joelhadas
rachou suas costelas. A criatura recolheu-se defensivamente, dilacerando em
reverso o ombro ferido em seu movimento de retirada, mas permitindo que
guerreira se levantasse e reencontrasse o equilíbrio.
Todavia,
diante de uma perfuração hemorrágica incapacitante e um oponente com o triplo
da sua força e o dobro da agilidade, Ashlan avaliou realisticamente sua
condição. Temperou a fúria com argúcia. Deste modo, optou por uma estratégia de
embate menos direta: retirou do cinto o que restava das suas moedas, e enquanto
amaldiçoava mentalmente Corso Amcar, arremessou a bolsa em direção a um dos
pilares. O som badalante atraiu o guardião conforme esperado; este agitou-se de
frustração, após retalhar o vazio.
Dada
a oportunidade de se reposicionar, a bárbara recuou com todas as precauções
possíveis para se tornar uma aparição: os pés imateriais sobre o solado das
botas, os movimentos coordenados com o peso distribuído das placas, a
respiração paulatinamente trancafiada sob marteladas cardíacas. Buscou corda
entre os pertences de Amcar. A besta compreendeu a intenção evasiva da
invasora, e por um breve momento, iniciaram um jogo de caça e caçador. Contudo,
antes que desse por si, era a monstruosidade quem estava sob assalto: quando
ouviu o som de gotas de sangue tamborilar na pedra lisa, sua garganta já havia
sido abraçada pelo laço atirado sobre sua cabeça demoníaca.
Sua
reação, imbuída de ódio irracional, foi proporcionalmente enérgica à audácia da
invasora. Ashlan tirou proveito deste ímpeto cego para reverter a força da
aberração contra si mesma, auxiliada pela uma espada lançada como chamariz na
direção correta e a curvatura sólida de uma coluna, combinadas de forma a
retesar o laço em uma coleira. Confusa com sua situação, a criatura primeiro se
estrangulou, depois tentou se desvencilhar do nó sem mãos hábeis para se
socorrer, e por fim tentou alçar voo desajeitadamente. A bárbara puxou forte o
bastante para garantir que isto não fosse possível, ancorou a corda à pilastra,
e enquanto a besta ainda estava aturdida, partiu para sua própria investida de
adaga em punho. Fincou a arma repetidas vezes na clavícula do guardião, o golpe
inicial silencioso, os seguintes carregados dos urros insubordinados à opressão
da quietude sacral. Quando afinal aa fera se deitou, a Drúan desenterrou a arma
do seu pescoço, cambaleou até onde sua espada descansava inerte, e descansou
ela mesma às margens do largo poço escarlate.
Momentos
depois, a forma magra e atlética de Amcar emergiu arfante da fonte mórbida.
Enxugou-se nos panos do casaco-vermelho, decorando-o com outros tons carmíneos,
e recolocou seus trajes e pertences. De olhos semicerrados, Ashlan identificou
que o ladrão tinha em mãos uma joia cintilante como um rubi, perfeitamente
esférica e do tamanho de seu punho fechado. Também era peculiar o brilho
sobrenatural pulsante que emitia: ritmado em dois tempos de baixa e alta intensidade,
como o batimento de um coração vivo. Corso admirou a pedra preciosa antes de
guarda-lo, e enfim, auxiliou a guerreira de aspecto combalido fazendo-lhe uma
tala para o braço ferido.
–
Você é verdadeiramente leal, Lady Ashlan. A maioria teria se acovardado e
fugido em seu lugar. Minha intuição realmente foi acertada.
–
Você me prometeu ouro, Corso Amcar. Apenas cumpra sua palavra. – Resmungou
dolorosamente, ainda que honrada pelo reconhecimento.
Ergueram-se
escorados um ao outro e assim partiram daquele antiquíssimo santuário negro;
para trás, deixaram somente as moedas de prata espalhadas pelo piso negro
banhado em vermelho, um pagamento simbólico ao mestre espoliado do guardião
abatido.
§
Os dias seguintes
passaram-se envoltos em uma névoa de memórias torpes. Quando se recuperou da
febre provocada pelo ferimento inflamado, Ashlan descobriu que permanecia
hospedada na Última Lanterna, sob os cuidados da anfitriã de olhos violáceos.
Recordava-se vagamente do trajeto de fuga para além das profundezas do Rochedo
e suas ruas ornamentadas. Quando saíram à superfície, o coreto estava cercado
por um grupo de guardas de prontidão. Por um momento, achou que Amcar fosse abandoná-la
pelo percurso conforme antecipara, mas o ladrão se revelou de uma firmeza moral
exemplar. Saltaram juntos pelas trevas. A partir deste ponto, o frio
causticante fragmentou suas lembranças. Arrastaram-se por becos enquanto os casacos-vermelhos
logo se espalhavam como uma legião de chacais ruidosos em seus calcanhares.
Ashlan agradeceu a importância dada por Corso em adquirir uma lanterna cuja luz
não os revelasse. Desfaleceu.
Determinado em comprovar seu rigor
moral, Amcar honrou o acordo combinado. Em sua cômoda de cabeceira, Ashlan
encontrou um pequeno baú com precisas trinta e duas dragonas de ouro, dezesseis
coroas de prata e quatorze lascas de quartzo azul bem lapidado; mais do que o
suficiente para desfrutar o restante do outono e um inverno de confortos, reformar
suas armas e armadura, ou se preferisse viajar para qualquer canto do velho
Império. Madame Zenovia também assegurou que Corso havia coberto os custos por duas
semanas inteiras de hospedagem. Dada a ampla generosidade, desconfiou que havia
recebido a parte mais modesta dos ganhos do ladrão. De qualquer modo, duas
semanas era tempo de sobra para decidir ficar ou partir. Uma cortesia e um
convite. A vida de ladinagem tinha seus apelos.
§
Feitos
os trâmites para entregar a gema escarlate a seu novo dono, Corso Amcar se
ocupou em visitar seus associados para quitar suas pendências. Adquirir uma das
Jóias de Nya'sh'huur não era tarefa para somente um ladrão, uma mercenária, um
alfaiate de disfarces e um barqueiro. Havia a criada encarregada da rotina do
Arquiministro. O médico responsável por dobrar seu entorpecente sonífero
naquela ocasião. O guarda disposto a informar o itinerário dos
casacos-vermelhos. Os espalhadores de rumores, certos de terem avistado um
ladrão vestido como corvo e uma mulher nortenha tomarem barco para Hyarmire.
Alguns destes aliados era conveniente que sua comparsa conhecesse; outros, era
preferível manter discretamente ocultos. Aqueles que compunham os fios
invisíveis da rede de influência de Lethari. Esta última visita era do segundo
tipo.
–
Bons ventos e correntezas, meu amigo – Corso considerava o antigo cumprimento
um tanto despropositado, já que a maioria das embarcações de Thamira somente
remava Rhien acima e abaixo. Mas os embarcadiços gostavam da tradição. – Os
negócios vão prósperos, espero.
–
Saudações, sombra andante. – O capitão produziu um par de taças e uma garrafa
de vinho quando se percebeu acompanhado na cabine. – Tão prósperos quanto
possíveis, para um paraíso perdido. A Guerra dos Herdeiros traz muitos
visitantes à nossas praias. – convidou o outro a se sentar com um gesto largo.
– Espero que a encomenda tenha atendido suas exigências. As notícias de sua
última expedição se espalharam rápido.
–
Seus homens cumpriram seu papel – recusou o assento, mas
degustou o vinho – ela estava tão persuadida da casualidade dos fatos quanto
poderia estar. Suponho que foram convincentes porque foram
sinceros.
O
capitão deu de ombros ambiguamente.
–
Algum dia seus jogos farão sentido, sombra andante. Suas peças se movem
estranhamente no tabuleiro.
–
O tabuleiro é apenas maior do que pode ver, meu amigo. Certas virtudes são
raras em Thamira, e coragem é a mais em falta delas. Se vai contratar um
serviço, é melhor que conheça sua qualidade primeiro, não concorda? – Deixou
a bolsa de moedas sobre a bancada do velejador. O homem ergueu a taça em um
brinde não correspondido.
–
Em outra ocasião, meu amigo. Em outra ocasião. – Amcar deixou o convés do Muriella satisfeito com o encerramento dos seus
assuntos. Que a mercenária jamais soubesse deste arranjo. Se coragem era uma
mercadoria rara em Thamira, confiança era uma que nunca era comercializada. Era
um luxo que ninguém podia se dar cercado de conspiradores e esfaqueadores rotineiros.
Era parte do jogo. Afinal, nem a mais moral das pessoas na Cidade das Adagas
poderia ser uma criatura tão honesta.